• Porque escrever é um vício.

    "O Coelho Branco colocou os óculos e perguntou:

    - Com licença de Vossa Majestade, devo começar por onde?

    - Comece pelo começo,
    disse o Rei, com ar muito grave -, e vá até o fim. Então pare."




    Já escrevi aqui, mas vou repetir tudo, especialmente para ela, que mencionou nunca ter entendido porque deram o nome de País das Maravilhas para o lugar onde Alice foi parar, arrematando: "Todos eram neuróticos ou loucos... aliás, alguns personagens são bem reais".

    Sim, isso é verdade...

    Quando me formei em Letras, enredei-me numa especialização sobre Literatura Infantil, num especial encantamento pelos Contos de Fadas. E o mundo de Alice, criado em 1865, ainda é cenário para muitas das minhas divagações...

    Alice no País das Maravilhas (e Através do Espelho), traz uma singularidade que é construída com elementos da realidade e um deslumbramento completo.

    Na maioria dos Contos de Fadas, o maravilhoso consiste em tornar possíveis as coisas desejadas e que, por este ou aquele motivo, são inacessíveis ou difíceis.

    Quando o herói não vence as situações pela prática da Virtude e do Bem, aparecem objetos mágicos, fórmulas encantadas, os animais reconhecidos, as Fadas e os benfeitores. O sonho vem, afinal, pousar, prisioneiro, na ponta da varinha de condão.

    Carroll (Lewis Carroll / 1832-1898) descobriu o que existe, realmente, de maravilhoso nas coisas cotidianas e em nós. É uma visão nova da vida, do segredo das leis que nos regem, do poder oculto das coisas, das relações entre os fenômenos a que estamos sujeitos. Tudo quanto possuímos de poético e também de absurdo, se apresenta nesse Conto.

    Ao descer pela toca do Coelho, Alice passa a habitar - como quando atravessa o espelho - um país diferente e conhecido, como quando fechamos os olhos e nos percorremos, num ato de introspecção. As surpresas despontam de todos os lados. Quem somos, afinal?

    “Quem é você?”, pergunta a Lagarta à menina, que lhe responde, como responderíamos atentos à nossa momentaneidade: “Eu? Eu mal sei, senhora, neste momento... Ao menos sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes, desde então...”

    E ocorre-nos a frase de Shakespeare nos lábios de Ofélia: “Senhor, sabemos o que somos, mas não sabemos o que podemos ser...”

    Os pequenos leitores de Alice tomarão como gracejo essa dúvida sobre a personalidade, essa indecisão da vida exposta ao tempo. Mas nós, os grandes, sabemos da sua íntima verdade e nos curvamos para ela, refletindo.

    Um dia, os pequeninos se encontrarão com essa pergunta que, na infância, os fez rir: e compreenderão que era só aparente a futilidade.

    Certas passagens do livro são bem surrealistas, como o aparecer e desaparecer do Gato - quem sabe, na pele da nossa consciência. Outras, envolvem problemas de lógica, como a conversa de Alice com o Chapeleiro e March Hare.

    Aliás, a história toda é exemplo da “arte de pensar”, bem como de exercícios de abstração e problemas de relatividade.

    Quando Alice conversa com o Mosquito, a respeito dos insetos, o interlocutor lhe diz: “Para que serve o fato de eles terem nomes, se não respondem por eles?” Os trocadilhos e jogos de palavras, as interpolações folclóricas como a da Rainha de Copas e a de Tweedledum e Tweedleedee, dão ao livro de Carroll acentuado caráter nacional.

    As Nursery Rhymes (Contos em Rimas para crianças), atravessam a história, iluminado-a com sua claridade familiar. A Poesia está largamente derramada em todas as suas páginas.

    Não parece o orgulho de Humpty Dumpty, mas o jogo livre do seu pensamento que lhe inspira aquela resposta: “Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que escolhi para ela significar - nem mais, nem menos.”

    As relações da menina com o mundo ambiente e os problemas derivados da sua mudança de tamanho, já tinham raízes na Literatura Inglesa.

    Não é essa desproporção a base das Aventuras de Gulliver, nas suas viagens entre os Gigantes e os Anões? Neste caso, o homem permanecia com sua estatura normal: o ambiente é que lhe dava a impressão de ora ser tanto, ora ser tão pouco... Em Alice, a menina é que aumenta e diminui, o que permite efeitos semelhantes em certas apreciações.

    Quando ela, por exemplo, mira a paisagem por detrás do espelho e exclama: “Eu declaro que está delineado exatamente como um grande tabuleiro de xadrez!!!”, não se pode deixar de pensar em Omar Kayyman: “É um grande, enorme jogo de xadrez que está sendo jogado em toda parte do mundo.”



    Lewis Carroll diverte a pequena Alice Liddel - para quem foi escrito o livro -, com inúmeras fantasias de linguagem, e é possível sentir o sonho de ser transportado a tantos lugares fantásticos, a tantas experiências poético-filosóficas, profundas e eternas, sob essa aparência inocente de uma narrativa sorridente.

    Como se sabe, a história foi inventada durante um passeio que o jovem professor Charles L. Dogson fez, certo dia de verão, com as três meninas Liddell. Não era a primeira vez que passeavam nem a primeira história que inventava para entretê-las, mas foi essa que interessou particularmente Alice, uma das três irmãs, a ponto de pedir-lhe que a escrevesse, para que não fosse esquecida.

    A menina devia ser encantadora, para que Dogson escrevesse no prefácio à obra: “Aqueles para os quais a mente infantil é um livro selado e que não vêem divindade no sorriso de uma criança, lerão estas palavras em vão... Enquanto que para aqueles que já amaram alguma vez uma criança, não são necessárias palavras...”.

    Encantadora e excepcional, para enlevar-se com uma narrativa que a cada instante foge do plano da realidade e se move dentro de um sonho, alada e sensível, num mundo em que a imaginação borda com todos os seus caprichos.



    (Consulta: Problemas da Literatura Infantil, Cecília Meireles)


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