• Porque escrever é um vício.

    "O Coelho Branco colocou os óculos e perguntou:

    - Com licença de Vossa Majestade, devo começar por onde?

    - Comece pelo começo, disse o Rei, com ar muito grave -, e vá até o fim. Então pare."




    Não sei se já escrevi aqui que sou formada em Letras com especialização em Literatura Infantil (e quase em Literatura Inglesa). Dei aulas por apenas quatro anos, mas gosto muito do campo.

    Há algum tempo, a Abril Cultural relançou todos os contos de fadas da Disney para compra e, no sonho de ter um baby, fui comprando um a um. Hoje tenho, em vídeo, quase todos os desenhos que povoaram minha infância - Branca de Neve, Cinderela, Pinóquio...

    Mas estava eu há pouco passando o controle pela TV, quando me deparei com Alice no País das Maravilhas, no canal da Disney, TVA. Já o vi um sem número de vezes, mas nunca me canso...

    O mundo de Alice, criado em 1865, ainda é cenário para minhas divagações...

    Alice no País das Maravilhas (e Através do Espelho), traz uma singularidade que é construída com elementos da realidade e um deslumbramento completo.

    Na maioria dos Contos de Fadas, o maravilhoso consiste em tornar possíveis as coisas desejadas e que, por este ou aquele motivo, são inacessíveis ou difíceis.

    Quando o herói não vence as situações pela prática da Virtude e do Bem, aparecem objetos mágicos, fórmulas encantadas, os animais reconhecidos, as Fadas e os benfeitores. O sonho vem, afinal, pousar, prisioneiro, na ponta da varinha de condão.

    Carroll (Lewis Carroll / 1832-1898) descobriu o que existe, realmente, de maravilhoso nas coisas cotidianas e em nós. É uma visão nova da vida, do segredo das leis que nos regem, do poder oculto das coisas, das relações entre os fenômenos a que estamos sujeitos. Tudo quanto possuímos de poético e também de absurdo, se apresenta nesse Conto.

    Ao descer pela toca do Coelho, Alice passa a habitar - como quando atravessa o espelho - um país diferente e conhecido, como quando fechamos os olhos e nos percorremos, num ato de introspecção. As surpresas despontam de todos os lados. Quem somos, afinal?

    “Quem é você?”, pergunta a Lagarta à menina, que lhe responde, como responderíamos atentos à nossa momentaneidade:

    “ Eu? Eu mal sei, senhora, neste momento... Ao menos sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes, desde então...”

    E ocorre-nos a frase de Shakespeare nos lábios de Ofélia: “Senhor, sabemos o que somos, mas não sabemos o que podemos ser...”

    Os pequenos leitores de Alice tomarão como gracejo essa dúvida sobre a personalidade, essa indecisão da vida exposta ao tempo.

    Mas nós, os grandes, sabemos da sua íntima verdade e nos curvamos para ela, refletindo.

    Um dia, os pequeninos se encontrarão com essa pergunta que, na infância, os fez rir: e compreenderão que era só aparente a futilidade.

    Certas passagens do livro são bem surrealistas, como o aparecer e desaparecer do Gato. Outras, envolvem problemas de lógica, como a conversa de Alice com o Chapeleiro e March Hare.

    Aliás, a história toda é exemplo da “arte de pensar”, bem como de exercícios de abstração e problemas de relatividade.

    Quando Alice conversa com o Mosquito, a respeito dos insetos, o interlocutor lhe diz: “Para que serve o fato de eles terem nomes, se não respondem por eles?”

    Os trocadilhos e jogos de palavras, as interpolações folclóricas como a da Rainha de Copas e a de Tweedledum e Tweedleedee, dão ao livro de Carroll acentuado caráter nacional.

    As Nursery Rhymes (Contos em Rimas para crianças), atravessam a história, iluminado-a com sua claridade familiar.

    A Poesia está largamente derramada em todas as suas páginas.

    Não parece o orgulho de Humpty Dumpty, mas o jogo livre do seu pensamento que lhe inspira aquela resposta: “Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que escolhi para ela significar - nem mais, nem menos.”

    As relações da menina com o mundo ambiente e os problemas derivados da sua mudança de tamanho, já tinham raízes na Literatura Inglesa.

    Não é essa desproporção a base das Aventuras de Gulliver, nas suas viagens entre os Gigantes e os Anões? Neste caso, o homem permanecia com sua estatura normal: o ambiente é que lhe dava a impressão de ora ser tanto, ora ser tão pouco... Em Alice, a menina é que aumenta e diminui, o que permite efeitos semelhantes em certas apreciações.

    Quando ela, por exemplo, mira a paisagem por detrás do espelho e exclama: “Eu declaro que está delineado exatamente como um grande tabuleiro de xadrez!!!”, não se pode deixar de pensar em Omar Kayyman: “É um grande, enorme jogo de xadrez que está sendo jogado em toda parte do mundo.”

    Lewis Carroll diverte a pequena Alice Liddel - para quem foi escrito o livro -, com inúmeras fantasias de linguagem, e é possível sentir o sonho de ser transportado a tantos lugares fantásticos, a tantas experiências poético-filosóficas, profundas e eternas, sob essa aparência inocente de uma narrativa sorridente.

    Analisando o livro, é possível reconhecer atributos singulares que esclarecem certos problemas na Literatura Infantil.

    Como se sabe, a história foi inventada durante um passeio que o jovem professor Charles L. Dogson fez, certo dia de verão, com as três meninas Liddell. Não era a primeira vez que passeavam nem a primeira história que inventava para entretê-las, mas foi essa que interessou particularmente Alice, uma das três irmãs, a ponto de pedir-lhe que a escrevesse, para que não fosse esquecida.

    A menina devia ser encantadora, para que Dogson escrevesse no prefácio à obra:

    “Aqueles para os quais a mente infantil é um livro selado e que não vêem divindade no sorriso de uma criança, lerão estas palavras em vão... Enquanto que para aqueles que já amaram alguma vez uma criança, não são necessárias palavras...”.

    Encantadora e excepcional, para enlevar-se com uma narrativa que a cada instante foge do plano da realidade e se move dentro de um sonho, alada e sensível, num mundo em que a imaginação borda com todos os seus caprichos.



    (Consulta: Problemas da Literatura Infantil, Cecília Meireles)




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