CANTO DE FOGO - Roberto Godoy
Foi há muito tempo.
Era um homem sério e experiente como um guerreiro. A sua presença na beira do lago já era tão familiar que não mais perturbava o crescimento das flores, o canto dos pássaros, ou o musgo da pedra. Os peixes o viam. A barba longa roçava a grama do verão e a neve do inverno sempre da mesma forma - carinhosamente.
A emoção batia forte - no ritmo do coração -, quando o homem sério abria a memória para ouvir um canto de fogo que falava, à meia-voz, de tempos difíceis, chaves mágicas, felicidade, oceanos e carícias únicas. Um encantamento, capaz de levar ao descanso a adaga da vingança, semi-desembainhada para seu uso frio.
As mãos do guerreiro-homem, antigas como a água da chuva, carregavam apenas três apetrechos básicos da criação - um pedaço de papel de arroz, um pote de tinta vermelha, um pincel de escrever.
Um dia, sob o gelo e o sol, o homem que era parte do lago recostou-se sobre a rocha, sorriu, saboreou o último perfume da brisa e, silenciosamente, partiu.
Dos seus dedos escapou a folha de papel sobre a qual em delicados ideogramas, ele escrevera, continuamente, durante toda a vida, o nome e o significado da mulher amada.
A maré do lago carregou-a para longe, e o vento soprou-a lentamente para as nuvens, afastando-a do olho perverso do dragão do passado.
No céu, desde então, quem a vê flutuando ao por-do-sol ou nas noites de lua cheia, pode encontrar nela o nome do maior amor de cada geração.
Hoje, os finos traços têm a forma de sete letras romanas.
Foi agora, para sempre...
Roberto Godoy - amigo -, é jornalista, diretor no jornal O Estado de S. Paulo. Trabalhei com ele por sete anos e esse é um de seus textos que mais gosto.
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